segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Serventia

Não era um pedreiro qualquer, muito menos um trolha daqueles que sujam muito e fazem mal. Era conhecido pela perfeição com que executava todos os trabalhos e pela capacidade em arranjar soluções, mesmo nos casos bicudos. Também eram parte intrínseca dele o mau feitio, a ausência de um sorriso, o semblante sempre fechado e carregado, e a exigência de ter sempre um servente a seu lado. Recusava trabalhar sozinho e era ele que escolhia o acompanhante.

Falava baixo e devagar, com momentos em que as palavras eram sussurradas, numa momice exclusiva e impossível de entender. A perfeição com que executava tudo o que lhe era pedido superava os atributos negativos, que fazia gala em exibir, sabendo que só recorriam a ele quando mais ninguém era capaz. Era bom no que fazia, e sabia-o. Quando era preciso, havia que aturá-lo mais as suas exigências.

Daquela vez foi-lhe pedido que arranjasse um bocado de parede junto à porta principal, caído em consequência de uma manobra mal calculada do tractorista, quando se aprestava para recolher um monte de folhas no pátio da entrada. Era fundamental que o trabalho fosse feito depressa e bem e, para isso, havia pouco quem. Era necessário impedir a todo o custo que o patrão, quando regressasse, se apercebesse do que tinha acontecido. Só o João conseguiria ...

- Quero o Joaquim comigo!

Sem discussão, foi-lhe feita a vontade. Pediu também um banco para se sentar, dado que o trabalho era a nível baixo e já lhe custava dobrar-se. O Joaquim cirandava de um lado para o outro, cumprindo as suas ordens, secas e claras.

- Cimento ... areia ... água ... esponja ... pincel ...

Tudo o que era necessário para a perfeição da obra tinha de aparecer mal ele abria a boca. Numa das deslocações, o Joaquim demorou mais um pouco e 

- Ó Joaquim ... Joaquim (mais alto) ... Joaquim (um berro)

- Diga, senhor João.

- Dá-me ali aquela colher.

A colher tinha-lhe caído das mãos e estava ali, perfeitamente ao seu alcance. Apanhá-la era trabalho de servente!

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